INTRODUÇÃO





O nome deste blog tem um significado muito especial para mim , na verdade esta era a frase que o meu avô mais utilizava entre um ar sério e brincalhão, sempre que eu e a minha prima Michele então miudas de 12 anos, nos portavamos pior do que o costume, o que normalmente significava estarmos a fazer algum disparate que o envolvesse , enquanto riamos desalmadamente! Era qualquer coisa como: vejam lá o que é que arranjam... - ou então : estas duas são frescas são! - ou talvez ainda : não façam nada que eu não fizesse!
Esta ultima já sou eu a esparvoar ...

Então crianças, atenção à escrita!

Está bem, está bem, já ouvimos.






sábado, 17 de novembro de 2012

Era uma vez...

Sempre gostei de escrever, histórias fruto da minha imaginação mas também histórias reais, porque sempre fui muito atenta a pormenores, aos pormenores que constroem os episódios do dia-a-dia, em particular aqueles mais insólitos ou mais caricatos. A história que se segue escrevi-a há cerca de seis anos, muito antes das Troikas e de outros males afins nos ocuparem e consumirem, como uma doença terminal, arrastando-nos num lodo que pouco espaço nos deixa para viver, quanto mais para a imaginação. Foi pois um episódio que se passou comigo e que na altura registei. Vou conta-lo como se tivesse sido hoje, senão perde a espontaneidade. Até lhe vou dar um título:

                                                                Era uma vez

Há muito que pondero na necessidade de ter um médico de família. Não que saiba exactamente o que isso significa nos dias que correm já que, antigamente (bom, não tão antigamente quanto isso, não sou assim tão velha!), quando eu era miúda, o médico de família era aquele para quem ligávamos por tudo e por nada, a toda e a qualquer hora, qualquer dor de cabeça era motivo; era aquele que chamávamos para vir a casa sempre que estávamos com um pouco de febre a qual nos impedia de sair e muitas vezes até mesmo de nos levantarmos (hoje em dia já não fica bem ter febre, dá-nos um ar de fracos por um lado e de subversivos por outro, o que na verdade é um contra-senso) e consequentemente de nos deslocarmos ao Centro de Saúde. O Médico de Família (vou passar a escrever as duas palavras em letras maiúsculas por respeito à imagem que tenho destes médicos) era aquele para quem ligávamos só para nos vir passar uma receita de aspirina e de seguida aproveitávamos para que nos passasse também e já agora, uma baixa. Enfim, ter um Médico de Família era uma coisa por um lado banal, por outro lado chic e por outro lado ainda, útil. Isso e ter alguém em casa que ligasse por nós para o nosso local de trabalho, comunicando que estávamos doentes e que, por conseguinte, não podíamos ir trabalhar. No tempo em que ainda não havia telemóveis claro, só telefones fixos. Os telemóveis estragaram tudo porque podemos tê-los encostados a nós na nossa almofada e, a não ser que a doença nos afecte a língua ou as cordas vocais podemos comunicar… ou enviar mensagens…a não ser que a doença nos tenha incapacitado fisicamente mas nesse caso accionamos o seguro… Bom, mas isso são outras historias. Continuando com o meu assunto, a figura conforme a descrevi acabou, morreu, finito, já não há mais. Isto sem que eu desse por nada. É claro que ainda podemos chamar um médico a casa mas temos que pagar a uma empresa de médicos ou a uma Companhia de Seguros, cotas periódicas e o médico nunca é o mesmo, o que logo à partida introduz um cunho menos pessoal ao relacionamento. “ Pensava que vinha o Dr. Sebastião…" “Esse senhor já não trabalha connosco.” “Mas …Doutor, desculpe mas não sei o seu nome, é que já me estava a habituar ao Doutor Sebastião…” “Pois, mas não convém habituar-se a nenhum médico porque variam e o Doutor Sebastião mudou-se para a concorrência”.
Esta nova figura de Médico de Família passou a ser somente um médico ao domicílio (aqui já não escrevi em letras maiúsculas, não por desrespeito a esta nova classe de médicos, somente para distingui-los nesta fase do processo) escolhido aleatoriamente no meio de vários, consoante, presumo eu, a agenda de cada um. É totalmente diferente e, neste caso concreto, nem sequer é relevante já que nunca me interessei por este tipo médico. O que é relevante, é o novo conceito de médico-de-família-que-já-não-vem-ao-domicilio que me foi sendo incutido nos últimos anos (anos pós-desaparecimento do verdadeiro Medico de Família) como sendo igualmente necessário, para não dizer vital, à nossa completa integração numa sociedade moderna e funcional. Uma pessoa não fica completa sem um Médico de Família. O homem, ou mulher que, lentamente (dependendo da regularidade e/ou intervalo entre as consultas), nos vai conhecendo por dentro mais do que por fora. De tanto me falarem em médicos de família criei uma obsessão." Então e por onde se move  tão especial criatura?" - perguntava eu à minha mãe que é perita nesta matéria. “No Centro de Saúde, claro! “ - Claro, repetia eu para mim mesma, és mesmo estúpida! Era como se de repente tivesse encontrado mais um propósito de vida, a luz ao fundo túnel, a peça que faltava no puzzle. Um Centro de Saúde com um Médico de Família lá dentro. Tantas maiúsculas numa frase tão curta só pode ser bom. Bom não, magnífico. Ou antes, teria sido magnífico se as coisas tivessem corrido bem o que, por muito que me esforce, não aconteceu e o passado não se altera. Mas não esmoreçam já porque a viagem não começa aqui. Começou sim, dois meses antes.

Um belo dia estava no trabalho e a ideia surgiu à minha frente como uma iluminura, tinha chegado a hora de marcar consulta para o médico a quem estava destinada no Centro de Saúde. Agarrei no telefone e liguei.
Era de manhã e não tive sorte (nem tudo na vida são rosas), a marcação teria que ser feita da parte da tarde. Liguei de tarde e, após uma breve troca de palavras, fui informada de que a médica que me estava destinada fazia as marcações directamente com os pacientes. Passaram-me a chamada. Não posso dizer que a médica tenha sido antipática ou mal-educada, também não foi simpática nem cordial, foi simplesmente bruta, desculpem brusca. Mas atingi o meu objectivo e a consulta ficou marcada para daí a quase dois meses o que me levou a pensar que, se estivesse muito doente, quando chegasse o dia da consulta, certamente já estaria então, das duas uma, ou defunta ou curada. Bom, se calhar estou a exagerar. Menos de dois meses para uma consulta, pensarão muitos, é afinal um tempo de espera perfeitamente razoável. Conheci uma senhora, já com alguma idade, que esperou um ano e picos para ser operada ao coração o que não chegou a acontecer pois entretanto teve um enfarte do miocárdio que se revelou fatal umas semanas antes do dia marcado. Por isso não vou reclamar.
Confesso que o meu forte não é chegar a horas mas no dia da consulta cheguei com algum tempo de antecedência, afinal tratava-se da minha primeira vez (agradecia que neste momento tomassem nota de que usei a palavra “vez” pela primeira … Bom, não interessa, já vão perceber).
O Centro estava praticamente vazio o que, devo confessar foi de imediato um grande alívio pois tinha antecipado uma visão estilo Inferno de Dante, um mar de gente a esbracejar em grande delírio e agonia… (desculpem, é que tenho uma imaginação fértil…). Dirigi-me à recepção onde estava uma senhora dos seus sessenta anos a atender. Olhou para mim como se fosse a primeira vez, o que era totalmente verdade. Expus o meu caso: que tinha uma consulta marcada com a Doutora X, que a consulta tinha sido marcada pelo telefone, que gostaria de saber quais os procedimentos. Explicou-me então que teria que me dirigir ao consultório onde a Doutora X dava consultas, esperar que ela terminasse a consulta que estava a decorrer e, entre esse paciente e o que havia de entrar a seguir ou seja, entre uma ida e uma vinda, pedir-lhe um número de espera – era ela e só ela quem atribuía os números de espera mais conhecidos por vez. Explicou-me também que após ter o número vez em meu poder devia, então sim, dirigir-me a ela, senhora da recepção, para que pudesse passar tudo a “limpo” no computador (não sei o que pode ser passado a “limpo” se só temos um misero número…) e então sim, já com várias folhas na mão regressaria ao meu local de espera e aguardaria a minha tão desejada vez.
So far so good , dizem os ingleses o que em português se pode livremente traduzir como “ parece fácil não é? “Ou talvez não. Confesso que logo de início tudo aquilo me pareceu bastante insólito mas também, verdade seja dita, quando vamos para um centro de saúde temos que fazer uma preparação do tipo pré-parto e mesmo assim às vezes sai uma cesariana. Mas continuando, fiz o que a senhora da recepção me indicou e dirigi-me ao local onde se encontrava a porta do consultório da médica, a qual se encontrava fechada. Era uma espécie de Sala de Espera em open space onde havia cerca de dez cadeiras que estavam ocupadas, excepto a décima primeira onde me sentei. O público era manifestamente mais velho do que eu e a senhora ao meu lado ou seja, a décima, tinha ar de frequentadora habitual daquele estabelecimento. Todos me observavam como se a nave de Spielberg tivesse aterrado naquele espaço e o comprimento do meu dedo indicador tivesse triplicado na direcção deles.
“ Desculpe, é aqui o consultório da Doutora X?” - perguntei à minha companheira mais próxima, apontando para a porta fechada do nosso lado esquerdo, mais para quebrar o gelo do que para confirmar o que já supostamente sabia. A senhora olhou para mim com um ar desconfiado e sério e respondeu:
“ É sim.”
Deixei assentar a poeira e avancei de novo.
“ A doutora já terá chegado? “ - esperar também nunca foi o meu forte.
“ Pois parece-me que sim.” - respondeu a velha, agora num tom ligeiramente incomodado.
Alguns minutos de silêncio.
De seguida atirei-me completamente para a frente, mergulho em apneia, salto sem rede no abismo à minha frente.
“ E será que estas pessoas estão todas para a mesma Doutora?”
Ao que a velha ( se ela fosse simpática chamava-lhe idosa) sábiamente respondeu :
“ Não pode esperar que eu tenha resposta para tudo pois não?” - a resposta vinha revestida de um tom encardido de anos e anos de espera em Centros de Saúde, denotando no entanto, alguma satisfação pessoal pelo facto dos seus conhecimentos estarem a ser requisitados, tal professora universitária a esclarecer o caloiro. Afinal, aquele era sem sombra de dúvida um meio onde se movia com nítido à vontade.
“ Não, claro, desculpe!" - retorqui em voz de banho-maria. A velha é estúpida que se farta, pensei, imbuída também eu, de alguma sabedoria. - " Lembrei-me que podiam estar para outros médicos.”
Outros médicos? Via-se mesmo que eu não percebia patavina do que estava a falar.
“ Não, não estão para outros médicos, estão todos para a Doutora X.” - rematou em apoteose sem olhar para mim. - "Mas tem que tirar uma senha na entrada” .
Neste ponto os olhos brilhavam-lhe, ávidos de conflito.
“ Uma senha? Mas é suposto a Doutora X atribuir a vez directamente…”
“Mas tem que tirar uma senha na mesma. Há pessoas que não tiram senha pensando o mesmo e depois arrependem-se.”
“ Mas isso não faz sentido nenhum!” - reclamei a medo, perante o ar triunfante da minha companheira. Raios partam a velha!- pensei de novo -Não podem ver uma rapariga jeitosa, mais nova trinta anos e ficam logo roídas de inveja.
“Depois não diga que não a avisei. ” - arrematou ferozmente , forçando-me a pensar se porventura, aqueles emails ameaçadores, com correntes que não podem ser quebradas senão mil anos de azar nos podem estar destinados, não serão da autoria de pessoas como aquela. Pelo sim, pelo não levantei-me, fui tirar uma senha e regressei ao meu lugar. Eu e a minha companheira não mais abrimos a boca. Mais alguns minutos de silêncio se passaram, durante os quais senti que cabeceava já em estado quase catatónico, com os olhos fixos na bendita porta que teimava em não se abrir. Realmente era difícil que se abrisse sozinha, pois se ninguém estava naquele consultório. Esta clarividência atingiu-me quando vi uma senhora em passo cadenciado, sem pressas, com ar de médica da corte, a dirigir-se naquela direcção. Abriu a porta, lançou o olhar para o casal que estava em primeiro lugar e disse-lhes para entrarem. Aproveitando o ensejo, levantei-me rapidamente e dirigi-me a ela antes que fechasse a porta, o que teria acontecido se não a travasse com a mão. Pus o meu melhor ar e perguntei:
“ Desculpe, é a Doutora X?” - a voz saiu-me bem colocada e límpida e todos os presentes ouviram.
Uns olhos, algo surpreendidos e frios, miraram-me de alto a baixo.
“ Sim.”
“Bom dia Doutora." - apresentei-me, mantendo o mesmo tom de voz. - "Tenho consulta marcada para as dezasseis horas e disseram para falar consigo por causa da vez."
“Tem consulta marcada? " - repetiu em tom irónico, falando sem olhar directamente para mim. "Comigo não.”
“ Tenho sim doutora.” Repeti, calmamente.
“Não tem não.”
“Tenho sim.”
“Ai não tem não. Nunca vi a sua cara!” - rematou triunfante. Que mulher inteligente!
“ Nem eu a sua, marcámos por telefone.” - rematei também eu, em tom ainda mais triunfante.
Silêncio, vamos chorar que o assunto não é para rir.
Olhou de novo para mim, agora como se visse um extraterrestre (tão fina mas com tão pouca cultura cinematográfica, pois se já não há extraterrestres desde que os Ficheiros Secretos terminaram) e sem dizer palavra, voltou costas, entrou no gabinete, dirigiu-se em passo lento à secretária e agarrou numa folha de papel que, hesitante, trouxe até mim.
“ O seu nome é Maria José?” - perguntou em tom mais amaciado, sem levantar os olhos da folha.
“É sim.”
“Então tem consulta marcada sim e o seu número é o 9.”
Oh, Yes babe!
“Obrigada Doutora. " - agradeci morta de riso, fazendo o ar mais sério do mundo.
Enquanto isto, a senhora da décima cadeira, aproveitando a corrida, também se levantara e pespegara-se atrás de mim, para também ela chegar à fala com a Doutora. Enquanto me afastava ouço-a, uma conversa do tipo ladainha, da qual não se percebia nada (eu sei que ela não estava a falar para mim mas naquele momento o ambiente estava propício a que ouvisse as conversas dos outros!) ao que a Doutora respondeu: “ O seu número é o 12”.
A senhora da décima saiu disparada na direcção da recepção e eu fui-me sentar ainda semi-atordoada com o decorrer da manhã. Eis que, alguns minutos decorridos, o senhor que está a ocupar o nono lugar vira-se para mim com um ar simpático e diz:
“ Olhe que, agora com esse papel, tem que ir de novo à recepção para eles lhe fazerem o registo da consulta e marcarem a vez."
“ Ah, pois tem razão. Com tanta confusão já nem lembrava." - anui, cada vez mais baralhada. Dirigi-me de novo à recepção. E quem estava à minha frente já praticamente despachada do registo da vez? A minha boa amiga e companheira de espera, a décima. Espertinha a velha!
Chegou então a minha turn (digo agora em inglês porque já disse a palavra vez um sem-número de vezes e estou a ficar agastada.)
“ Diga por favor?” - avançou a senhora da recepção como se, de novo, me visse pela primeira turn, embora tivesse falado com ela há não mais de 40 minutos ( isto, sem querer ser presunçosa e convencida, ao afirmar que noventa e nove por cento das pessoas que me vêem uma vez, reconhecem-me na segunda. Os restantes um por cento serão, talvez, invisuais).
Estendi-lhe o papel, dei-lhe o cartão dos Serviços de Saúde e também o cartão do meu Subsistema de Saúde, isto porque a senhora estava indecisa se tinham que ser os dois, ou um, ou até nenhum. Lá se decidiu e registou a minha consulta. Quando estava quase a terminar, reparo que a décima estava, de novo, praticamente colada a mim, não tendo assim regressado ao seu lugar da vez e fica com um ar enfurecido quando houve a recepcionista anunciar alto e bom som, como se fosse uma lotaria, o que obviamente, eu já sabia: “ O seu número é o 9.”
“ Pois é! " - explode então a minha ex-companheira. - " Esta senhora tem o número 9 e eu o número 12. Como é que ela conseguiu isto é que eu não sei! Vim pr’aqui quase de madrugada, ela chega muito mais tarde, sempre a fazer perguntas e agora isto. Deve ter uma grande cunha.”
Pensado assim à distância, tudo aquilo foi verdadeiramente delicioso, mas na altura fiquei irritada.
“ Eu? " - exclamei boquiaberta.-  "Cunha, eu? “
“ Sim , cunha, conseguiu o número 9 e eu só tenho o número 12!”
Disto isto afastou-se em passo estugado, sempre a olhar para trás como se estivesse a ser perseguida. Fiquei sem palavras. Até a senhora da recepção ficou sem palavras.
Finalmente obtive os meus papéis e regressei ao meu lugar. Felizmente a décima tinha-se sentado noutra cadeira, que entretanto vagara.
Abre-se então, a porta do consultório e sai o casal que antes tinha entrado. Pensei pois que tinha chegado, se não a minha vez pelo menos a vez de alguém mas não, o casal saiu, fechou a porta atrás deles, afastou-se e nada aconteceu. Ninguém chamou mais ninguém. Até que dou comigo a ouvir a conversa que a minha futura médica estava a ter, aparentemente ao telefone, sobre contas e produtos bancários (por sinal a minha área), uma conversa de índole pessoal, alto e bom som, enquanto os pacientes muito pacientemente se mantinham à espera da sua vez.
A conversa deve ter demorado cerca de vinte minutos, o tempo duma consulta. Inaceitável! Quando terminou, abriu-se novamente a porta do consultório e ouviu-se uma voz chamar o meu nome, num tom quase inaudível. Sorte a minha ter uma boa audição, senão ainda hoje lá estava à espera. Levantei-me e entrei. À minha frente, sentada à secretaria, estava a minha médica, de bata branca e pescoço esticado ao máximo tal a quantidade de fiadas de pérolas que o envolviam. Demasiado maquilhada e demasiada bijutaria, fazia lembrar uma qualquer mulher dum qualquer senador americano do Texas, de Dallas de preferencia.
Expliquei o motivo da minha presença ali. Que pretendia iniciar contacto com o meu médico de família, que andava muito cansada e gostaria de fazer análises e por aí fora, sem no entanto me estender demasiado, afinal, era só o meu primeiro contacto. Com ar displicente, a médica não se levantou, todo o diagnóstico foi feito a partir da cadeira, não me mediu a tensão, não me auscultou, nada, limitou-se a ficar sentada e a prescrever várias análises numa folha de papel. Terminada a consulta, nem sei se trocamos mais alguma palavra, saí e apressei-me na direcção da recepção para carimbar a prescrição.
“Este papel não serve.” - disse a senhora da recepção com os olhos ligeiramente esbugalhados.
“Não serve?”  Bem, bem, comecei a ficar nervosa.
“Não serve porque a senhora tem um subsistema de saúde e tem que ser um outro papel. Vá falar com a Doutora que ela passa-lhe outro.”
Fiquei em estado de choque. Ter que falar de novo com aquela fulana médica, não sabia se ía aguentar. Mas lá fui.
Esperei um pouco à porta, na expectativa dela terminar a última consulta e,  assim que  a porta se abriu e saíram os pacientes, aproveitei para entrar, por sinal ombro a ombro com a décima, que só agora via chegada a vez dela.
“Doutora! " - irrompi, perante o olhar reprovador da mulher com vários colares de pérolas, sentada atrás da secretária - "Este papel não é o certo, tem que ser o outro”. Falei de sopetão, sem me desculpar e sem dar azo a interrupções.
A médica e a minha ex-companheira de espera fulminaram-me com o olhar. Talvez até mais a segunda.
“ Vê! Eu bem lhe disse que se calhar não era este. " - gritou a médica como se a seguir fosse suposto dar-me uma palmada. - "E agora sabe o que isso significa?”
“Presumo que significa que vai ter que passar um novo.”
“Pois é, vou ter que passar tudo a limpo.”
Naquele ponto fiz uma paragem para reflectir. O comportamento daquela mulher era de tal modo bizarro que achei melhor entrar em modo zen. Mas ela não deixou.
“A senhora  já devia saber qual o papel certo para passar os exames, não eu. ”
E, pronto, não me contive.
“Eu?" - gritei já em estado de histerismo - "Então eu disse-lhe que era a primeira vez que vinha a um Centro de Saúde e eu é que devia saber? A doutora é que tem obrigação disso!”
Sem mais palavras a médica desatou raivosamente a gatafunhar umas letras numa coisa parecida com uma lista de exames, numa folha de outra cor.
“ Tome.” - estendeu-me a folha flamejada de pequenas raivas e rematou: “ Gostava de saber o que é que uma pessoa com um Subsistema de Saúde próprio anda a fazer em Centros de Saúde- É mesmo vontade de andar a perder tempo."
Peguei na folha, olhei-a em silêncio, voltei as costas e saí.
Toda a cena tinha sido mais do que insólita. Inacreditável. Mas ela tinha razão numa coisa: perder tempo com uma pessoa daquelas dá mesmo vontade de uma só coisa: querer escrever sobre isso.

E mais uma vez continuo sem médico de família. Alguém tem um comprimido para os nervos?



domingo, 7 de fevereiro de 2010

Sem receita médica

Tem alguma coisa para o esquecimento? A frase surgiu de uma senhora que estava ao meu lado, a ser atendida na farmácia, mas diluiu-se no vai e vem da funcionaria e nas conversas dos restantes clientes.Só eu ouvi. A senhora devia andar pelos setenta e apesar do aspecto físico ser bastante razoável , tinha um ar perdido como se tivesse mais idade ou antes, como se o chão do tempo teimasse em fugir-lhe debaixo dos pés. Já ali estava há um bom bocado, trouxera uma receita para aviar que a funcionaria levara na mão, para trás e para diante ,enquanto ia depositando os medicamentos no balcão . E eram muitos. Habilmente a funcionária escrevia em cada uma das caixas as quantidades e os intervalos de tempo correspondentes.Uns eram para o coração, outros para a tensão, outro ainda para a artrose, a pomada para massajar as pernas. A senhora não estava minimamente interessada, a sua postura inquieta denunciava outros pensamentos mas anuía, educadamente ,ao que lhe ia sendo transmitido.Na altura de pagar, sentiu-se o seu nervosismo crescer, quando a mão deslizou para dentro da mala que pousara em cima do balcão. Tirou, primeiro um e de seguida vários envelopes de janela que abriu, um a um e revirou nas mãos tentando localizar o dinheiro que deveria estar num deles. Mas o dinheiro não se mostrava, estaria mesmo num envelope? Talvez no que estivesse dobrado, ou seria naquele que tinha umas anotações com letra azul, ou talvez no bolso com fecho eclair localizado na parte de dentro da mala? Se calhar não tinha levado dinheiro … mas sim, lembrava-se de ter tirado dinheiro de uma gaveta da cómoda e não se lembrava de o ter deixado em casa, por isso tinha que estar com ela.Era uma busca insana, a mão trabalhava ansiosa, ás escuras, sem rumo. Se não era aquele envelope, devia ser o outro ou então não era ali ou então … Quanto é que devia?Já não se lembrava e a falta de vista impedia-a de ler o talão de compra. A funcionária repetiu o valor. Finalmente encontrou a carteira de onde foi tirando notas e moedas que, sem contar, espalhou em cima do balcão perante o olhar paciente da farmaceutica que tentava ajudá-la . O dia já ia longo.Contas saldadas, teve que fazer o caminho inverso, desta vez já sem ninguém à espera, demorou tempo para arrumar os medicamentos dentro da mala entre os envelopes de janela e a carteira e outras coisas que servem para não sei o quê. O seu tempo na farmácia tinha terminado, estava aviada e havia mais pessoas para serem atendidas, mas não se foi embora . Manteve-se no mesmo lugar, imóvel e expectante e quando a funcionaria regressou para atender outro cliente, já não esperando encontra-la, a senhora inclinou-se para a frente em ar de confidência, o estômago prensado contra o balcão, os olhos pesquisando rapidamente em redor como se não quisesse ser vista, na verdade, resguardando-se de algum ouvinte indesejado, e baixando o tom de voz de forma quase inaudível, falou. Falou, mas não se ouviu: desculpe mas não percebi... questionou a farmaceutica mantendo o ar paciente. O tempo esgotava-se.A senhora encheu-se de coragem e de novo investiu , estômago e barriga colados ao balcão, cabeça inclinada para a frente, desta vez a funcionaria adoptou igual postura e assumiu o mesmo ar de cumplicidade, os rostos quase se tocaram e a voz soltou-se : a menina tem alguma coisa para o esquecimento?